segunda-feira, 15 de outubro de 2012

PASTORAL CARCERARIA

 

CARTA DE UM PRESO AGNÓSTICO

(Esta carta me foi enviada pelo meu amigo preso que está no regime Semiaberto, e que escreveu alguns dos artigos desta secção. Ele me enviou a carta, enviada a ele por um dos colegas de prisão quando estava no "fechado"). 
Olá, meu caro.......
Domingo, de ar seco quase desértico e um céu sem nuvens, cruzado por abutres a descrever círculos sobre o presídio. Devem pressentir carniça, pois muita gente anda morrendo: como num presídio com quase dois mil homens a enfermaria não dispõe de desfibrilador nem oxigênio (exigidos por lei em qualquer avião comercial, mas não em presídios...)? "Brésil il n'est pas un pays sérieux!"
Somos, na verdade, uma categoria inferior, uma casta maldita e proscrita; as estatísticas mostram que, presos, passamos a ter o risco de morte multiplicado por seis. Você, porém, que vive na expectativa da vida eterna, será punido por uma generosa longevidade. A questão é: o que fazer com esse tempo?
Você tenta anulá-lo com seus hábitos ascéticos, de um monge sem monastério, de um Charles de Foucauld fora do deserto. Eu, privado de fé, atormento-me em busca de um sentido. Embora ridícula por ser seguramente infrutífera, esta busca é uma outra forma de fé (a fé na existência de um sentido). A diferença entre nós é que, percorrendo a mesma estrada, você caminha convencido de saber aonde vai chegar, enquanto eu confesso não dispor de nenhum mapa nem crer nos existentes (e tantos...), embora ainda creia que o mapa exista.
O drama do agnóstico é a busca do sentido, uma busca necessariamente laboriosa e sofrida, já que nenhum sentido pronto, formatado numa crença que se origina na revelação, lhe serve. A sua revelação tem de vir de dentro.
Nietzsche disse: “Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer coisa.” A salvação de quem não tem um Deus pessoal, revelado e antropomórfico, é a fé na possibilidade de encontrar esse “porquê” munido tão somente da própria consciência, intelecto – não sem o coração, mas sem hipocrisia.
No fundo, talvez, tudo seja ilusão; os que mais desavergonhadamente se iludem são em geral os mais felizes. A outra faceta do meu drama é não ser capaz de tanto auto-engano.
A vida é como estar no dentista: a gente pensa que o principal ainda vem, quando na realidade já passou”. Essa máxima (de Bismarck) acho que se aplica mais a mim do que a você, que não concentra mais ilusões na vida terrena, enquanto eu ainda acredito em alguma sublimação, transcendência, superação, resgate. Na literatura, talvez...
Não dê importância a pessoas que fazem de tudo para “te” diminuir, humilhar. Você, eu e algumas outras pessoas que se sobressaem aqui somos sempre alvo de uma multidão não-pensante que se sente incomodada pelo que julgam ser nossa superioridade, então se comprazem em os rebaixar, ridicularizar, superdimensionar as nossas falhas. Errar aqui e ali num serviço perfunctório, que não lhe faz sentido e que não é feito com paixão, é mais do que normal. "Don't worry!"
(...)
Meu amigo, perdoe a extensão da missiva. Não é para cansar o censor, tampouco a ti. É que estou sentado no pátio do setor (tem visita na cela, e tenho que passar o dia inteiro no pátio), e escrever ocupa-me parte do tempo. Antigamente, domingo era o melhor dia para mim: recolhia-me no silêncio e escrevia; agora, passo o dia sofrendo, com os meus problemas de saúde e só posso escrever desoladas e prolixas epístolas.
Tenho me sentido tão só que me pus a escrever, de repente, para pessoas que sumiram da minha vida assim que fui preso, na ilusão de que ainda alguém possa nutrir uns resquícios de afeto por mim.  A resposta (de uma dessas pessoas) foi:”Não posso. Realmente, não posso.Espero que você compreenda”. Um banho de água fria!
Então escrevi três cartas para três dos meus antigos colegas. Ainda não recebi resposta. Acho que não deveria apelar para esse tipo de coisa, mas a solidão afetiva é muito grande, e também a vontade de saber como estão, como minha prisão os afetou, etc. Talvez descubra, ao fim, que ninguém mais quer papo comigo. As pessoas introjetaram a versão repulsiva da mídia. Quem se salva depois de uma hecatombe como aquela?(...)
Assinei várias revistas de cultura. (...)
Termino aqui. Pra você: Temo somente não ser digno do meu tormento” (Dostoievsky) - “A emoção que é sofrimento deixa de ser sofrimento no momento em que dela formamos uma idéia clara e nítida” (Spinoza) - “Et lux in tenebris lucet” = e a luz resplandece nas trevas (não sei se é da Bíblia. Deve ser ).
Fique bem! Abração! N.
RESPOSTA AO PRESO AGNÓSTICO

Sempre é maravilhoso poder receber sua missiva, principalmente com essa qualidade literária que eu invejo com babas infindas!
Não vou dizer-lhe muitas coisas úteis à sua vida, porque sei que talvez não seja isso que você queira, mas simplesmente “jogar conversa fora”. Como os amigos de Jó, sento-me ao seu lado e choro com você. Se isto o consola, eu lhe digo que tenho me sentido um pouco assim com meus “fellows”. Vejo-os lá na lua, tão distantes ficaram, com problemas que para mim, atualmente, me parecem muito fúteis.
Sinto-me parte deste grande todo, que é belo em algum ponto e horrível em outros pontos. A prisão me tem feito voar na planície, do pondo de vista material, como esses gansos pesados que não se elevam a mais de um metro do chão, e também me tem feito voar nos mais altos píncaros das montanhas, como as águias, no sentido espiritual. É uma verdadeira “agonia e êxtase”.
Entretanto, amigo, as mais das vezes eu me sinto interiormente livre, como dizia Kant, porque agora eu “me tenho mais em mãos” do que antigamente.
Uma grande aventura, dada tanto a ateus como a agnósticos e cristãos, é a de vencerem-se a si mesmos, é a de superarem-se, é a de dominarem-se e, assim, poderem entregar-se todo inteiro a uma causa nobre.
Uma das minhas “causas nobres” é a minha salvação; uma outra, é a salvação dos que a desejam, e aí entro com minhas orações e colaborações ao nosso amigo comum Teófilo, que sempre está em contato comigo e até publica alguns dos meus textos.
E quanto a você? A causa nobre sua seria a literatura? Uma outra, talvez no mesmo nível, seria levar adiante aquele projeto mencionado em sua carta? “And so on”?
Resta-nos a luta diária para a superação de nossas “esquisitices”, frescuras e comportamentos individualistas e egoístas! Aí poderemos nos sentir livres para voarmos nos cumes “everésticos” do mundo, em busca de uma vida feliz.
Diz Sta. Teresinha, que viveu dos 15 aos 24 anos totalmente num convento, fechada, até que morreu de tuberculose: “A alegria não está nos objetos, mas no mais íntimo do coração; podemos senti-la no mais luxuoso palácio como na mais triste prisão”.(...)
Um abraço! 

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