Ninguém escapa
Ingmar Bergman se consagrou no cenário cinematográfico internacional em 1957 com o filme “Sétimo Selo”. O drama serve de parábola dos tempos do pós-guerra, ainda atormentados pela memória das recentes atrocidades bélicas e pelo medo das possíveis consequências da Guerra Fria.
Antonius Block, um cruzado que sobrevivera a perigosas batalhas pela fé, tenta furtar-se à Morte que o espreitava sob a máscara da peste quando regressava à sua terra. Para isso, inutilmente joga xadrez com essa exímia estrategista, numa tentativa desesperada de adiar o desenlace.
A certa altura, ao distrair-se da partida, a Morte lhe pergunta:
— Você perdeu o interesse?
— Perder o interesse? Pelo contrário!
— Você parece preocupado. Está escondendo alguma coisa?
— Nada lhe escapa!
— Nada me escapa. Ninguém me escapa.
Rito de passagem
O filme costuma ser lido pelos historiadores como uma alegoria do ciclo devorador do tempo. Com efeito, no final apenas sobrevive uma família de artistas, que representaria o Renascimento sucedendo à Idade Média decadente. A Morte seria o tempo, pelo qual a história se desdobra: pois o tempo é o rito de passagem que revelaria a identidade de quem o vivencia.
Embora essa leitura seja válida, não há motivo suficiente para desviar a atenção de que a Morte alcança a cada homem em particular, a você e a mim. É um pedágio ao qual ninguém escapa. A morte, sem dúvida, é o primeiro passo desse obrigatório rito de passagem do tempo para a eternidade. Tanto mais assustadora quanto menos se conhecem os passos ulteriores.
Nesse ponto, porém, encontramos pessoas que olham para a morte de forma otimista: “Aos ‘outros’, a morte os paralisa e assusta. A nós, a morte — a Vida — dá‑nos coragem e impulso. Para eles, é o fim; para nós, o princípio” (São Josemaria, Caminho , 738).
Com efeito, a fé cristã é clara quanto à ressurreição final de todos os mortos, com a respectiva retribuição da vida ou da condenação eternas. Contudo, o que diz a fé acerca do que sucede nesse período intermediário, entre a morte e a ressurreição?
Justiça misericordiosa
O sentir da Igreja ao longo da história foi unânime em afirmar a necessidade de uma reparação por parte dos defuntos que, merecendo a salvação por terem tido uma derradeira abertura interior para a verdade, sepultaram-na sob repetidos compromissos com o mal. Nesse sentido, fala-se, no Ocidente, de um sofrimento purificador e expiatório das almas no além; no Oriente, de diversos graus de sofrimento na condição intermédia.
A percepção da graduação da purificação ultratumular tradicionalmente admite pelo menos dois níveis de “purgatório”. Assim o atesta a Summa theologiæ: “Do lugar do purgatório nada se encontra expressamente dito na Escritura, nem se podem aduzir razões eficazes que o determinem. Contudo provavelmente, segundo o mais concorde com o ensino dos santos Padres e a revelação feita a muitos, o purgatório ocupa um duplo lugar” (Apêndice, solução ao art. 2).
É evidente que o primeiro nível seria o do purgatório tradicional, proclamado dogmaticamente por Bento XII em 1336, mediante a Constituição Benedictus Deus, na qual o Pontífice fala do que ocorre às almas segundo “a comum ordenação divina” (DS 1000).
O nível inferior do purgatório corresponderia àquele das “almas penadas” ou “almas perdidas”, cuja existência é atestada pelas orações litúrgicas, pelos exorcistas e por algumas revelações privadas.
Não buscar consolo, mas ajudar
Contudo, mais importante do que essas especulações, é que podemos contribuir para o refrigério dessas almas. Talvez isso pareça inusitado ao homem de hoje , tão desligado dos seus, vitimado de individualismo e mais desejoso de encontrar nos cultos fúnebres consolo para as suas saudades do que formas de contribuir para a salvação dos que se foram. Nesse sentido, são alentadoras as palavras de Bento XVI:
“Aqui levantar-se-ia uma nova questão: se o «purgatório» consiste simplesmente em ser purificados pelo fogo no encontro com o Senhor, Juiz e Salvador, como pode então intervir uma terceira pessoa ainda que particularmente ligada à outra? Ao fazermos esta pergunta, deveremos dar-nos conta de que nenhum homem é uma mônada fechada em si mesma. As nossas vidas estão em profunda comunhão entre si; através de numerosas interações, estão concatenadas uma com a outra. Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Continuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E, vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem. Deste modo, a minha intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estranha, uma coisa exterior, nem mesmo após a morte. Na trama do ser, o meu agradecimento a ele, a minha oração por ele pode significar uma pequena etapa da sua purificação. E, para isso, não é preciso converter o tempo terreno no tempo de Deus: na comunhão das almas fica superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor um elemento importante do conceito cristão de esperança. A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim. Como cristãos, não basta perguntarmo-nos: como posso salvar-me a mim mesmo? Deveremos antes perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal.”
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